Maria de Lourdes Lima dos Santos

Família e "socialização":
um aspecto da evolução
social contemporânea


      Na aprendizagem social, a família desempenha uma importante função e constitui um sistema em que os respectivos membros se diferenciam pelos diversos papéis sociais que lhes são atribuídos. As categorias de idade e sexo são fundamentais nessa diferenciação e o evoluir dos correspondentes papéis sociais, estreitamente relacionado com a mudança das estruturas familiares e da sociedade
global, reflecte-se no processo e nasformas de socialização da criança.


1. A família como agente de socialização1
      No duplo circuito particular-geral, geral-particular, a família aparece como um intermediário entre o indivíduo e a colectividade. É um subsistema a um tempo afectado pela colectividade
e afectando-a — parte de um todo orgânico, numa relação de interdependência e interpenetração. 
      Fase do processo que conduz do indivíduo à colectividade, a família é um veículo de modelos sociais, um instrumento de «socialização» pelo qual os indivíduos se inserem no meio que os rodeia.

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1 0 termo socialização usado ao longo deste texto significa «o processo pelo qual o indivíduo aprende a ajustar-se ao grupo, através da aquisição de um comportamento social que o grupo aprova» — definição de A Dictionary of the Social Sciences, ed. Julius GOULD e William L. KOLB, The Free Press of Glencoe, N. Y., 1964.


      Não sendo a único intermediário entre o indivíduo e a sociedade, ela desempenha, no entanto, um papel fundamental na socialização das novas gerações, assegurando a continuidade biológica e cultural das comunidades, mediante e mediando um qualquer sistema de normas e valores elaborado por aquelas. 
      No interior da família começa a elaborar-se o comportamento social (social behavipur) dos indivíduos, resultado de uma aprendizagem que se inicia quando a criança é capaz, não só de distinguir entre o eu e o outro, mas, mais propriamente, de interiorizar a imagem do outro (a mãe) e a imagem que esse outro tem dela. Só a partir dessa altura pode entrar numa relação de reciprocidade com outrem ou seja comunicar. Comunicar é, pois, premissa de socializar: «estudar a socialização é estudar a evolução das relações sucessivas pelas quaisi a criança comunica com o meio social em que se encontra desde o nascimento2.
      Importa aqui introduzir o conceito de rôle (papel social) que contribui para esclarecer o processo de aprendizagem. Muitos autores explicam a formação do Eu a partir da interiorização de um comportamento de rôles, o que corresponde a um «desdobramento» interior de sujeito observador e observado. Retomaremos o conceito adiante, retendo desde já o carácter normativo do rôle que constitui «um modelo organizado de comportamentos, relativo a uma certa posição de indivíduo num todo inter-relacional» (Ralph LlNTON).
      Dentro desta perspectiva, socialização é um sucessivo aperceber e assumir de rôles múltiplos, implicando o seu alargamento, diferenciação e agrupamento progressivos.
      A família-agente de socialização, forma de mediação, instrumento de inserção na vida social, será outro dos conceitos subjacentes no presente trabalho, onde se procurou reunir algumas observações sobre determinadas características e aspectos evolutivos dos papéis sociais de idade e sexo, condicionantes dos papéis sociais familiares.
      Porém, antes de analisar esses papéis, torna-se necessário levantar algumas questões implicadas na perspectiva por que se vai encarar a família, cuja função social vê a sua importância modificada conforme as sociedades consideradas. É preciso não esquecer que a evolução por que têm passado os modelos sociais que regulam as relações familiares, afecta em quantidade e qualidade o papel da família na socialização dos indivíduos.

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CHATEAU, L'enfant et ses eonquêtes, Vrin, Paris, 1960.

      Quando se fala de família, aparece geralmente a tendência para tomar o conceito num sentido restritivo, significando uma forma de família que sie foi definindo ao longo do surto e desenvolvimento da burguesia. Essa forma de família é apresentada como dicotômicamente oposta à antiga família extensa, patriarcal, ainda hoje remanescente nos meios rurais não desenvolvidos.
      Neste ponto, parece-nos útil recorrer aos «tiposi ideais» de sociedade propostos por David RIESMAN , na medida em que a sua tipologia pode contribuir para alargar e esclarecer aquele corrente conceito de família.
      O autor distingue três tipos de sociedade, cada um elaborando um dado carácter social, cuja conformidade é assegurada pela tendência dos membros dessa sociedade para: (a) seguir a tradição — tipo «tradition-directed»; (b) adquirir um conjunto de objectivos interiorizados desde muito cedo — tipo «inner-directed »; (c) desenvolver uma grande receptividade às esperanças e preferências dos «outros» — tipo «other-directed».
      Uma vez que são ideais (ou seja: abstractos) estesi três tipos de sociedade definidos por RIESMAN, O que na realidade surgirá serão combinações onde predomine um ou outro tipo, conforme o grau de desenvolvimento económico das regiões em causa. 
      A função social da família assumirá diferente importância numa sociedade, consoante o comportamento dos indivíduos seja predominantemente determinado pela tradição, intro-determinado ou extro-determinado.
      As transformações por que passa a organização do trabalho com o desenvolvimento da burguesia e da industrialização, aparecem acompanhadas, ao nível da família, por uma tendência para a concentração dos respectivos membros. A comunidade familiar tradicional, que realizava comunidade de bens, trabalho, vida, sangue e culto, dá lugar ao grupo familiar predominantemente conjugal. Criam-se novos hábitos de vida — à medida que o trabalho
se vai processando cada vez mais longe da casa, do lar, as pessoas tendem a reunir-se, a fazer a sua vida de família de «portas a dentro», constituindo um grupo relativamente fechado e isolado.
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3 David RIESMAN, La Foule Solitaire, Arthaud, Paris, 1964

      Os tempos livres, cada vez mais destacados dos tempos de trabalho — espaços apertados entre os rigidifiçados horários profissionais — em grande parte, são consumidos pelos indivíduos na sua própria formação. O indivíduo na sociedade burguesa, na fase do surto industrial, mostra-se particularmente exigente para consigo mesmo e por conseguinte para com os filhos. A criança e a sua educação assumem enorme importância numa sociedade onde a mobilidade começa a crescer — «a aceleração da divisão do trabalho significa que um número crescente de crianças não pode contentar- se com imitar o exemplo dos pais4.
      Dá-se como que uma reestruturação da família, tendo a criança como fulcro. Prepará-la para subir na hierarquia social surge como o dever dos pais, que vão utilizar uma disciplina austera como meio dos mais adequados para aceder à posse. Nesta fase é fundamentalmente a família (e cada vez mais a família conjugal) quem socializa o indivíduo; os «grupos de idade» que, nas comunidades tradicionais, participavam amplamente nessa função, só recentemente irão retomar importância, como adiante veremos 5.
      A criança objecto de uma atenção familiar que é sobretudo cuidado pelo investimento que se pretende rentável, e por isso não consente indulgência, esta criança corresponderá ao indivíduo irdro-ãetermiriÀdo em cujo processo de socialização é particularmente flagrante a perda de liberdade. Neste caso, a família, muito embora ignore frequentemente qual o role social que os filhos irão desempenhar na sociedade (uma vez que o seu objectivo visa uma promoção para algo que ela própria não conhece exactamente), crê ser esse objectivo atingível mercê de um intenso esforço individual.
      Para além dos diferentes modelos que as diferentes classes se propõem, há uma noção de maturação, de estatuto adulto, que parece sfer denominador comum das sociedades de tipo «intro- -determinado» ou seja, das sociedades que, «grosso modo», podemos situar numa fase de industrialização anterior ao grande capitalismo moderno. No referido estatuto de adulto estão contidos valores que são limitados e gravitam em torno do ter. A figura paterna impõe-se pelas suas capacidades para adquirir, conservar e aumentar a propriedade da família ou, pelo menos, para preparar os filhos no sentido de poderem vir a fazê-lo. O estatuto de adulto é algo a que se assimila a maturação, e esta pressupõe uma meta a atingir, o termo de um processo — o adulto, detentor da potência sexual, da «experiência de vida», aquele que completou a escolaridade, cumpriu o serviço militar, está na posse dos direitos cívicos e políticos, exerce uma profissão, dispõe! de recursos financeiros, é casado, chefe de família.

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4 David KlESMAN3 ob. cit., pág. 70. 
5 «(...) estes grupos de idade desempenhavam nas sociedades tradicionais um papel bastante aproximado ao que os bandos de adoliescenteis de hoje poderiam desempenhar nas nossas sociedades se, nestas, tudo o mais não se lhes opusesse. É no interior dois grupos de idade que a criança ou o jovem é iniciado nos conhecimentos tradicionais que a sua idade e sexo exigem» — Philippe ARIES, «L/évolution des roles parentaux», Familles tfcmjowr&hui, ed. do Institut de Sociologie, Bruxelas, 1965, pág. 37.

      Na passagem para uma sociedade do tipo extro-deternánaão, esta noção de maturação desagrega-se, ao mesmo tempo que se transformam as condições da aprendizagem social na família. «Sob o domínio dos monopólios económicos, políticos e culturais, a formação do super-ego maduro parece, agora, saltar por cima do estágio de individualização (...). A organização represisiva dos instintos parece ser colectiva e o ego parece ser prematuramente socializado por todo um sistema de agentes e agências extrafamiliares » 6.
      Os «mass-media» entram em concorrência com a família no processo de socialização da criança e imprimem-lhe as imagens quie definem a conformidade capaz de servir uma sociedade onde «a empresa familiar independente e, subsequentemente, a empresa pessoal independente deixaram de ser unidades do sistema social e estão a ser absorvidas, em grande escala, nos agrupamentos e associações impessoais. Ao mesmo tempo o valor social do indivíduo é medido, primordialmente, em termos de aptidões e qualidades de adaptação padronizadas, em lugar do julgamento -autónomo e da responsabilidade pessoal»7. O papel dos pais numa sociedade de tipo extro-determinado terá, pois, menor suficiência do que o dos pais actuando numa fase de intro-determinação, quando, não sabendo precisamente para o que preparavam os filhos, tinham, contudo, uma ideia mais ou menos bem definida sobre o comportamento a exigir-lhes. Em sociedades de tipo extro-determinado revelam uma maior insegurança e um menor rigor a que não será alheia a transformação por que tem vindo a passar a noção de maturidade e de estatuto adulto. A figura paterna «desvaloriza-se» ao mesmo tempo> que um sistema educacional conservador e uma experiência ultrapassada perdem a eficácia. Esta «desvalorização» obriga a renunciar ao conceito clássico de maturidade-processio acabado, que parece tender cada vez mais a significar aceitação da incompletude.

6 Herbert MARCUSE, Eros e Civilização, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1968, pág. 97.

7 Ob. cit., pág. 96.

      No suceder das gerações, esta transformação far-se-á sentir de forma diferente e com maior ou menor intensidade conforme forem mais ou menos abertos à mudança os meios a que esisas gerações pertençam. De qualquer modo, a sobreposição que se vem a operar da influência dos grupos secundários face ao grupo primário familiar não deixará de ter repercussões importantes no socializar da criança. Esta, continuando, por um lado, a identificar- se com as figuras parentais e a ser absorvida pela intensidade das relações dentro de uma família-refúgio 8, é, por outro lado, solicitada a incorporar no seu ego os inúmeros modelos que os mass-media lhe oferecem, modelos que se definem pelos códigos de grupos secundários e podem não se coadunar com os ideais do grupo familiar, originando tensões negativas dentro deste e alterando o equilíbrio dos papéis sociais dos membros da família.
3. O papel social («role»), ao processo de socializarão 
      No processo de socialização, os indivíduos descobrem, adoptam e adaptam-se a roles vários. 
      A noção de role implica a noção de um modelo que se nos impõe, do exterior, pela mediação dos grupos de pertença e de referência de cada um, portanto como um elo entre a sociedade e os indivíduos, empregando um conjunto de valores que ligam a «pessoa social» a um «círculo social».
      Ao longo deste texto, apresentam-se simultaneamente dois pontos de vista, segundo os quais se podei considerar a noção de role. De acordo com um desses pontos de vista, a sua análise far-se-ia partindo da sociedade para os seus elementos constituintes; de acordo com o outro, partindo de comportamento dos! indivíduos para os fenómenos de grupo — donde, os conceitos de modelo cultural e de role aparecerem ligados estreitamente, conjugando-se um enfoque decorrente da Psico-Sociologia e um enfoque decorrente da Psicologia Social. Não obstante esta estreita ligação dos dois conceitos, há que ter presente que o modelo «não constitui em si mesmo um conceito dinâmico e relacional, mas é por seu intermédio que os valores e normas da sociedade se irmanam nas relações vivas e nos recíprocos comportamentos de role dos membrosdessa sociedade» 9.
      Estatuto é uma outra noção muito próxima da de role10. Normalmente, distingue-se um do outro, fazendo o estatuto referir-se à posição que a pessoa ocupa na sociedade e o role ao comportamento associado a essa posição. Para STOETZEL, o role é «o conjunto das acções implicadas no estatuto», enquanto HARTLEY fornece uma definição mais completa, considerando-o como «um modelo organizado de expectativas relativas às tarefas, condutas, atitudes, valores e relações recíprocas que devem ser mantidas por pessoas ocupando posições específicas de membros de um grupo e desempenhando nele funções definidas».

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8 A família oferece um refúgio contra o mundo. Ela já não é um agente de transmissão entre o poder e o indivíduo. Põe o indivíduo ao abrigo do mundo exterior e por isso é tão valorizado o encontro do homem e da mulher na formação de um casal edificado sobre o amor» — palavras de Jean Morsa ao encerrar um Colóquio realizado em 1965, consagrado à Sociologia da Família e cujas intervenções vêm publicadas em Familes d'Aujourdy'hui, Editions de l'Instiitut de Socioloigie, Université Libre de Bruxelles. 
9 Anne-Marie ROCHEBLAVE-SPENLÉ, La notion de role en Psychologie Soáale, PUF, Paris, 1962, pág. 105. 
10 Os conceitos de role e estatuto acusam divergências de emprego conforme os autores. De uma maneira geral, porém, o estatuto aparece como um conceito estrutural e o rôle como um conceito personalista. Para LINTON O rôle designa «a soma total dos modelos culturais associados a um estatuto particular; sendo o estatuto usado num contexto socio-económico.



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